sexta-feira, 5 de março de 2010

Artigo O TIRA VIDAS. Dedicado à memória da Defensora Pública Fátima Lopes

Duciran Farena, procurador da República na Paraíba

Dedicado à memória da Defensora Pública Fátima Lopes, sempre presente entre os que a conheceram e no coração dos pobres e necessitados aos quais se devotava.

Encontrei Fátima Lopes pela última vez em um evento da Procuradoria do Estado, realizado em outubro do ano passado. No intervalo, ela me procurou para discutirmos uma estratégia de atuação conjunta nos casos de falta de medicamentos excepcionais. Fátima Lopes não podia deixar de pensar nos carentes e necessitados, seu trabalho e também a paixão da sua vida.

Vida que se perdeu de modo bárbaro, em um brutal acidente de trânsito. Mais uma vez, a irresponsabilidade cobra seu preço em vidas humanas em nossa capital, já tão tristemente célebre por tragédias como essa.

Recordo-me de um caso que me foi contado anos atrás por um advogado conhecido. Um playboy, de boa família, aluno de tradicional colégio, embriagado, atropelou e matou duas pessoas da mesma família. Não prestou assistência; a placa de seu veículo, considerado esportivo para a época – um Gol GTI – fora anotada pelo motorista do carro de trás, revoltado com a selvageria. O criminoso não curtiu um dia sequer de cadeia e foi beneficiado pela suspensão do processo, com restrições mínimas – o fato ocorreu antes do atual Código de Trânsito. Nunca deixou de levar sua vida normal, frequentar bares, boates, baladas etc. Logo após acabado o incômodo do processo, o rapaz convidou os amigos para uma comemoração. E ali, após algumas doses, confidenciou que costumava, para si mesmo, batizar seus carangos com nomes – e o do acidente, prestes a ser trocado, havia sido denominado “o tira vidas”.

Nem todos os causadores de acidentes serão tão cínicos quanto o “tira vidas”. Mas todos têm algo em comum – o desejo de fugir de sua responsabilidade, retornar à vida normal o mais rápido possível, esquecer o episódio do qual também se consideram “vítimas”. A dor, o sofrimento, a ausência são privativos da família enlutada. Nada trará de volta o ente querido, certo? Por que, então, querer destruir a vida de um pobre rapaz, com toda a vida e futuro pela frente? Vingança? Que sentimento mais feio!

Parece que nossa sociedade ainda não está preparada para entender que cada um deve assumir a plena responsabilidade pelos seus atos – já nem se fala no caráter retributivo da pena, no consolo que representa para a família da vítima saber que o réu não ficou impune.

Uma das caracteristicas dos países desenvolvidos é a de que todos sabem quais são seus direitos, mas também seus deveres e responsabilidades, e que não podem escapar destas últimas. Nenhum brasileiro se arriscaria a dirigir com uma gota de álcool no sangue em Londres ou Miami. Sabem o que lhes passaria. Aqui não. Somos todos crianças indisciplinadas, que devem ser perdoadas, mimadas, acariciadas, consentidas. A família da vítima é que deve envergonhar-se de seus desejos fúteis de vingança, recolher-se, definhar.

É curioso o mecanismo psicológico em que a responsabilidade pessoal é transferida para o objeto inanimado. É comum que os bêbados do volante digam, em tom de vanglória, que “o carro andou sozinho”, para explicarem o fato de, em estado de alta embriaguez, terem chegado sãos e salvos em casa. Certamente o playboy da nossa história se indignaria – e quem sabe até processaria – quem o chamasse de assassino. Não fui eu, foi a máquina. Máquina mortífera. O carro trouxe o dono para casa, o carro levou outros para o cemitério. Coisas da vida...

Em João Pessoa, infelizmente, a lei seca não pegou. Foi apenas um susto passageiro. Cedo os infratores perceberam que nada têm a temer, talvez de vez em quando evitar a BR. Não se vê a fiscalização com bafômetros nas avenidas principais, nas noites de sexta e sábado, nas baladas, no momento da saída das grandes festas que agitam o pedaço. Diz-se que os promotores desses eventos, que muitas vezes têm a segurança promovida pela própria polícia, não poderiam ter sua esplêndida perspectiva de lucro anuviada pela possibilidade de um bafômetro. Será verdade?

Eles estarão sentados no banco dos réus, a face compungida, a postura estudada, o modo sério. Eles evitarão olhar para os acusadores, para a família da vítima – e quando o fizerem, por um breve momento, será um olhar triste e interrogativo: “por que estão fazendo isso comigo? Por que este escândalo indecoroso, já não estou sofrendo o bastante? Já não tive que gastar tanto com advogados? Em que meu sofrimento lhes aproveita?”

Eles serão rapazes de futuro, profissionais, noivos, filhos de família, pais de família. Pessoas a quem jamais negaríamos uma segunda chance.

Mas não nos iludamos. Eles são os tira vidas.


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